RECEBEMOS DA NOSSA JABUTI DE CARTEIRINHA,Elena Orge, ESTE VERDADEIRO ESTUDO SOBRE BIKE, COMPORTAMENTO DE CICLISTA cicloativismo. Muito importante a matéria, pela qual agredecmos à nossa querida Elena. Está aí, também, o blog do MARIO AMAYA
Valci Barreto,
valcibarretoadv@yahoo.com.br
Editor do bikebook.com.br
Coaborador do muraldebugarin.com
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MÁRIO AMAYA
www.marioav.blogspot.com
Elitismo onde, idiota? Bike não é carro!
A boa notícia é que apesar do trânsito infernal, das ruas violentas, da prepotência e agressividade reinantes, dos acidentes com mortes, do descaso total das autoridades públicas e da alienação dos responsáveis por gerir tráfego, o número de pessoas que resolvem investir na bicicleta como transporte urbano - e se dão bem com ela - está aumentando muito rapidamente em São Paulo. E não só porque a bike é mais prática para distâncias curtas, não gasta muito espaço, economiza muito dinheiro de combustível e impostos, não paga estacionamento, gera mais sociabilidade com outras pessoas no trânsito, exercita coração, pulmões e músculos e enche as pessoas de endorfinas geradoras de alegria. Não só por isso. Mas também pela comunidade de ciclistas que está se formando, todos trocando ideias, roteiros e dicas, apoiando-se, encontrando-se, formando grupos, criando amizades, interconectando afinidades.
Eu pedalo habitualmente nas ruas de São Paulo desde 1992, quando havia muito menos trânsito e quase não havia ainda ciclistas renunciando voluntariamente ao automóvel para viver mais contentes. O povo gritava "tartaruga" ao me ver de longe, pois o capacete era uma raridade inusitada. Hoje, ciclistas equipados estão por toda parte, e onde há um é muito fácil ver outros.
Também diversificou-se o tipo de bike que circula pelas ruas e avenidas. Nos anos 90 houve uma explosão da mountain bike e imitações vagabundas de mountain bikes, as quais são quase exclusivamente o que ainda hoje se vende nos supermercados. Nas ruas atuais, a maioria ainda usa mountain bikes e imitações. Mas muita gente também usa compactas, dobráveis com rodas pequenas, cargueiras antigas restauradas, bikes de sexo trocado (bikes masculinas usadas por mulheres e bikes femininas usadas por homens), estradeiras levíssimas e de pneus finos, choppers artesanais, lowriders de butique. A fauna sobre duas rodas é muito mais ampla hoje.
E isso me traz ao assunto verdadeiro deste artigo. Quando comecei a pedalar, parecia haver só dois tipos de bikes para uso mais sério: a pseudo-mountain bike vendida no supermercado, e acima dela, a importada glamurosa. Atualmente, além da maior variedade de marcas, temos nacionais que preenchem um segmento intermédio. Quem começa a pedalar a sério logo nota que as bikes de supermercado servem para começar, pegar gosto, quebrar um galho, mas assim que você exigir só mais um pouquinho delas, começarão a quebrar constantemente, e então você perceberá que as bikes de grife que você achava injustificavelmente caras são as que simplesmente funcionam direito.
Se você se tornar um fanático pelas duas rodas - ou mesmo se não se tornar fanático, mas acumular muitos e muitos quilômetros de pedal -, vai começar a entender a intimidade do funcionamento da bike. Sacar a diferença entre uma suspensão hidropneumática e uma de elastômero. Discutir a diferença entre ter um pinhão de 34 dentes com uma coroa de 24 e ter um pinhão de 32 com uma coroa de 22. Isso vem naturalmente, com a experiência. E tem muito ciclista que não está nem aí com treinamento físico e alimentação, mas adora conversar sobre tecnicidades, peças, materiais. O pessoal dos meus primeiros tempos não conversava sobre cicloativismo, infiltração na mídia, massificação, controle social, ações de conscientização pública e tantos outros assuntos políticos e sociais, que hoje são constantes e prementes. Não havia esse tipo de auto-orientação coletiva. Todo mundo falava apenas sobre as maravilhosas bikes novas, as últimas inovações tecnológicas que eram anunciadas nas revistas gringas, e em quais lugares em Mairiporã ou na Serra do Japi seria legal testá-las.
O pessoal que vejo nos novos passeios urbanos - descontando os passeios patrocinados por lojas, dos quais não tenho participado - usa, preferencialmente, bikes urbanas. Com bagageiros. Cestas. Alforjes. Baús. Buzinas. Faróis. Pedestais. Refletores. Adesivos. São uma outra "tribo" que emergiu majoritariamente. Embora esteja no meio disso tudo, ainda me considero diferente. Além de ser mais velho, sou um remanescente do tradicional mountain biking. Penso muito antes de instalar o mínimo acessório numa bike minha. Para promover dois usos diferentes, tenho duas bikes modernas: uma mountain bike pura, e uma outra bike mais simples que recebe os tais acessórios.
O pessoal novo eminentemente urbano não entende porque eu apareço num passeio com a minha FSR XC, que só está verdadeiramente em casa nas trilhas no meio do mato. Resposta: porque me deu vontade, adoro pedalar ela em qualquer lugar. Mas é uma full suspension de cross-country, com freios a disco hidráulicos e despida de acessórios para uso na rua. Isso aparentemente destoa muito do gosto dos ciclourbanitas.
Eu não me importaria com nada disso, porque além de ser uma bela bike, ela tem uma história justa. Minha primeira mountain bike com tudo a que tinha direito foi uma Specialized Stumpjumper, que montei peça por peça em 1992. Daí veio a minha admiração por essa marca, que é como se fosse uma Apple das mountain bikes. Tive mais duas Specialized além dela, ambas passadas adiante. Consegui atingir a incrível marca de 14 anos pedalando a Stumpjumper, com pouquíssima manutenção. Só então cogitei de comprar outra bike mais moderna, pois a mecânica tinha mudado dramaticamente em 14 anos. Não investi meu dinheiro do FGTS num modelo milionário; apenas naquele que um norte-americano consideraria mediano, com peças que não chegam a ser profissionais para competição, mas sem comprometer demais o peso, batendo na marca decisiva das 30 libras de peso (13,6 quilos). Grupo Shimano Deore LX, para os mais entendedores. A escolha foi correta. A bike é gostosa, feliz, move-se com elegância, veste-me como uma luva, não dá trabalho.
Daí que estou num passeio urbano com umas 30 pessoas, quase todas do perfil urbano que descrevi. Descubro no meio do trajeto que a pastilha de freio dianteira está definitivamente gasta. Vou ter que guiar nas pontas dos dedos, pois por uma imprevidência minha, eu não trouxera um par de pastilhas de reposição para instalar ali mesmo. Chega então um ciclista que não conheço e proclama, com a aparente satisfação fútil e rasa de um invejoso: "É por isso que não abro mão do velho e confiável V-Brake".
Que existe um feudo entre defensores dos velhos V-Brakes e dos novos freios a disco é visível em qualquer fórum de mountain bike. Mas por mim é uma discussão passada, já que TODAS as mountain bikes gringas vêm com freios a disco. Hoje esses freios têm uma longa série de vantagens que só mesmo um zelote alucinado poderia ignorar. E não custam um absurdo para possuir e manter, pelo contrário. Eles dão zero manutenção. E mais: eu ignorei o ciclista do passeio, mas poderia ter respondido: "Está vendo o número no odômetro? Quanto diz ali, 4600? Esse é o número de quilômetros que esta bike rodou com um único e mesmo par de pastilhas de freio dianteiras, desde que veio da fábrica." Mas entrar nessa minúcia técnica seria entrar num jogo desigual, onde o outro lado está presente apenas para marcar posição e afirmar-se, não para atingir qualquer entendimento.
Esse incidente simples passaria totalmente batido, se não fosse apenas um dentre muitos outros, sempre semelhantes, repetitivos, pequeninos incômodos que se acumulam como picadas de minúsculos mosquitos verbais. Ora são as críticas sem fundamento para marcar posição, ora é simplesmente um tipo de ostracismo tácito, isolando o dono da "bike cara". Ah, sim, isso também acontece bastante.
Num dos passeios, alguém veio me insistir que a suspensão traseira roubava movimento oscilando. É um velho preconceito gerado pelo fato real de há suspensões traseiras que usam um projeto obsoleto e oscilam horrivelmente com a pedalada. Mas a FSR, ou qualquer outra suspensão atual e bem implementada, NÃO oscila se eu não pedalar como um macaco destreinado. Mais ainda: bastaria o crítico pedalar ao meu lado por alguns metros, observando o movimento vertical da roda, para comprovar o que digo, em vez de jogar a objeção no meio de uma conversa no pré-aquecimento. Qual é? Medo de descobrir que está perdendo algo muito bom? Porque de fato a suspensão é uma coisa de sonho, representa boa parcela do motivo de eu insistir em pedalar a minha bike vermelha quando não preciso dela. Experimente em vez de resistir por reflexo cultural; que tal?
Só quando comecei a me incomodar de verdade com tanto estranhamento bobo é que comecei a entendê-lo. Dentro desses grupos de neociclistas metropolitanos, há um emergente preconceito contra o que chamam de "elitistas". E o que seriam tais elitistas, na opinião deles? Alguém que anda com uma bike um pouco mais cara do que a média geral do grupo. Que, no seu julgamento precipitado e superficial, não "merece" pedalar nada mais sofisticado. Qualquer ciclista que aparece mais arrumadinho, na opinião deles, só pode ser um mauricinho que não pedala nada, trazendo a bike cara dentro do conforto do seu SUV para ostentar-se brevemente com ela na ciclovia do parque. Se ele vestir roupas específicas de ciclismo, então, será o insulto final: ficará irremediavelmente marcado como um "inimigo do povo".
Alguém me perguntou se eu tenho a bicicleta para mostrar em público como sou descolex e modernete, ou apenas porque ela foi o melhor que pude comprar em 2006, depois de 14 anos pedalando uma mesma bike antiga, sendo que ela poderia ter sido financiada pela economia advinda de eu nunca ter tido carro por opção voluntária, quando na verdade o dinheiro veio de uma rescisão de emprego e eu a usei para escapar da depressão? Alguém me perguntou se fiz questão de que fosse uma bike "gringa" porque ela é bonita, ou porque tem uma ergonomia séria, não deixa peças quebradas pelo caminho e o quadro tem garantia vitalícia para o dono original? Essas são as perguntas que não foram feitas antes que começassem com picuinhas que não mudam em nada minha opinião sobre as bicicletas, mas me afastam das pessoas, porque minha tolerância com essa gente é zero.
Eu gosto de todas as bicicletas do mundo. Adoraria ter uma bike de turismo da Peugeot dos anos 70 ou uma rara Moulton inglesa; acho a Barra Circular admiravelmente harmoniosa; roubaram-me na garagem do prédio uma Diamond Back de downhill antiga, que eu estava restaurando com componentes STX garimpados em oficinas; um dos meus melhores amigos tem em casa uma oficina de metalurgia, onde constrói bicicletas sob medida, com as próprias mãos. Levei a minha segunda bike, equipada com bagageiro, alforjes e barraca de camping, numa viagem pelo interior. Não creio que seja exatamente o currículo de um elitista.
E acho também que tudo o que disse agora a título de me justificar só interessa a mim mesmo, não preciso imprimir e levar na carteira.
Quer saber mais? Vou continuar a pedalar a minha bike vermelha "cara" quando eu quiser e onde quiser. Objeções não mais serão recebidas com complacência.
A tragédia da situação é que aparentemente as pessoas precisam conhecer a fundo as bicicletas para começarem a entender que todas elas têm uma magia especial, e com isso aprenderão a parar de tratá-las e a seus ocupantes com a mesma lógica socialmente viciada que chegou ao ponto extremo de tornar o simples ato de dirigir moralmente questionável em certas circunstâncias. A cultura de massa do automóvel alçou-o a símbolo de status supremo do consumismo sem noção e da escravidão à moda. Bicicleta, porém, se é para ser símbolo, há de ser de uma opção de vida saudável e feliz; de uma escolha individual inteligente e liberta da mentalidade estúpida de manada; de uma consciência social desenvolvida. E de mais nenhuma outra coisa.
Tom Ritchey foi um dos inventores da mountain bike, e a empresa com seu nome ainda hoje produz alguns dos componentes mais luxuosos do ramo. Mas o que está tomando o tempo de Tom Ritchey? Ações humanitárias na África. Projetar e fabricar uma bicicleta de transporte para ajudar as comunidades rurais pobres de Ruanda. Patrocinar uma corrida feita com bikes artesanais de madeira sem pedais. Para mim, a opinião de Tom Ritchey sobre o papel social da bicicleta tem muito mais consequência do que a de um morto-de-fome-espiritual preconceituoso que pedala pelas ruas de São Paulo.
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Editores: VALCI BARRETO, Advogado, estudante de jornalismo. Fones: 9999-9221 (Tim), 3384-3419 e 8760-7969 (Oi). Email: valcibarretoadv@yahoo.com.br. Colaboradores: Itana Mangieri, Alberto Bugarin e Sérgio Bezerra. Todos blogueiros, cicloativistas e amantes de livros, fotos e videos - Interesses do Blog: reportagens, artigos, com destaque especial para passeios de bicicletas, livros, cultura em geral, cicloativismo, cicloturismo e educação para o trânsito. Colaborações serão sempre bem vindas.
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