terça-feira, 5 de abril de 2011

JOAO GILBERTO, IREI A JUAZEIRO


Perfil

João, made in Juazeiro

Um dos criadores da bossa nova e fonte das melhores safras de músicos, João Gilberto completa 80 anos em junho, e na certa longe do oba-oba. Quem sabe, no máximo, um banquinho e um violão em sua Bahia
Por: Tom Cardoso
Publicado em 18/03/2011
João, made in Juazeiro
(Foto:Gerardo Lazzari/Revista do Brasil)
 O homem vai fazer 80 anos e ninguém conseguiu entendê-lo ainda. A condessa de nome interminável (Georgina de Fauciny Lucinge Brandolini d’Adda), proprietária do apartamento onde ele mora, o ameaçou: ou ele passa a prestar atenção na evolução das rachaduras da parede da sala e do piso do banheiro, ou será despejado. Justamente ele, João Gilberto, que não tem nada de edificante para fazer a não ser tocar seu violãozinho. A Prefeitura de Juazeiro, sua cidade natal, fez pior. Prometeu para junho, mês de seu aniversário, um megaevento, com o homenageado subindo ao palco com todos os artistas influenciados por sua bossa, de Caetano Veloso a Ivete Sangalo (sic). Fala-se até em Norah Jones. Horrorizado, ele já avisou a amigos próximos: “Eu não vou”.
João Gilberto gostou mesmo foi de um presente que ganhou adiantado da filha Luísa, de 6 anos: um pente para colocar dentro do violão, junto com o afinador. Achou o máximo. Filha de seu relacionamento com a produtora Claudia Faissol, Luísa é responsável pelos raros momentos de alegria do violonista. João anda triste. Já pediu ajuda ao então presidente Lula – de quem é fã – e ao Ministério da Cultura. Ninguém quis atendê-lo.
Ele trava uma batalha na Justiça para trazer de volta ao mercado três de seus principais discos, incluindo sua obra-prima, Chega de Saudade (1959). Em 1992, a gravadora EMI, detentora do catálogo da Odeon­, reuniu­, à sua revelia, três álbuns (mais o LP Orfeu da Conceição) em um único CD, O Mito. O bem-bolado dos ingleses desagradou a João, que processou a EMI. Seu ouvido atômico detectou diversas mudanças nas faixas originais, desde problemas na masterização até um pout-pourri (a mistura de várias faixas em uma só) inventado pela gravadora.
Cada vez mais recluso (a bateria do seu Monza cinza-grafite arriou de vez), João foi visto fora de casa apenas uma vez nos últimos dois anos. Fez questão de comparecer a uma das audiências do caso EMI. Ouviu, perplexo, um juiz afirmar que as mudanças nas faixas eram “subjetivas”, que ele, ora essa, estava sendo exigente demais. Calado até então, João pediu a palavra: “Excelentíssimo: o senhor compraria uma Mona Lisa de bigode?”
“Ele ficou tão chocado com a indiferença da Justiça brasileira que se tornou um homem ainda mais fechado. Cancelou todos os seus shows e gravações. Ficou deprimido”, diz Claudia Faissol. A produtora, de 38 anos, engravidou de João quando ainda estava casada com o empresário Eduardo Zaide. O escândalo alimentou a pauta das revistas de fofocas, mas não abalou a relação de Claudia e João. Claudia tornou-se a assessora, a empresária e a relações-públicas de João. Ah, ela também está escrevendo uma biografia e produzindo um documentário – já tem um acervo enorme de imagens gravadas do namorado, todas, claro, com ele tocando violão em sua casa. “Como o João não faz show nem grava há muito tempo, ele já tem ensaiado um repertório para pelo menos três discos”, revela Claudia. “O passatempo dele é transformar tudo o que ouve em bossa nova. Outro dia, eu o surpreendi cantando baixinho, com seu violão, uma versão em bossa de uma canção do Chitãozinho e Xororó.”
João, quando não está tocando violão, o que é raro, ou falando ao telefone com algum amigo (uma conversa com ele não dura menos de duas horas), está vendo TV. Vê de novela a futebol. Vascaíno doente, não anda contente com o time do coração – prefere o Santos de Neymar e Ganso. Ultimamente­, tem assistido a muitas lutas de vale-tudo. Os parentes não entendem sua fixação pela modalidade, já que João tem horror a qualquer manifestação de violência­. Os passeios de madrugada são cada vez mais raros. “A criminalidade o assusta. Ele tem pânico de pegar um túnel e ser surpreendido por traficantes”, diz Claudia.

Mitos

Há muitas lendas em torno de João Gilberto. Algumas histórias são puro folclore, como aquela em que seu gato, depois de ouvir o dono ensaiar 546 vezes a mesma música, sofreu um surto psicótico e pulou do 12º andar. Mas uma história que João compartilhou com Fernando Faro, este não esquece nunca mais. João sabe que pode contar sempre com o produtor, um dos maiores nomes da televisão brasileira, criador do programa Ensaio, da TV Cultura, e amigo do peito do intérprete. Faro, de 83 anos, lembra como se fosse ontem o dia que encontrou­ João pela primeira vez no corredor da TV Tupi. Ambos são dois grandes contadores­ de história.
João morava no bairro da Barra, em Salvador, e costumava andar de bicicleta até Amaralina. No caminho, passava sempre por uma construção e ficava impressionado com a idade dos meninos que trabalhavam na obra. Um dia ele resolveu parar. Perguntou a idade de um deles. “Onze anos.” Depois seu nome. “Nascimento.” “João parou a história aí. Não disse mais nada. Ficou em silêncio até eu perguntar o que tinha acontecido depois”, lembra Faro. “Não aconteceu nada, Faro. Eu fiquei deprimido e fui embora. Onde é que se viu uma criança se chamar Nascimento? Deveria se chamar Zezinho, Luizinho, Pedrinho. Fiquei muito triste.”
No começo de fevereiro, Faro conversou com João por telefone. “Ele estava animadíssimo.” Só perdeu o humor quando lembrou mais uma vez a história da EMI. “Ele fica realmente muito chateado em saber que três dos seus discos mais importantes dependem de uma decisão judicial para serem ouvidos”, conta Faro, que espera estar junto do amigo quando ele completar 80 anos, no próximo 10 de junho. Sabe, porém, que não precisa estar perto fisicamente. Basta um telefonema. “João nunca gostou de oba-oba. Ele adora conversar, gosta de ser paparicado. Mas por quem ele gosta, por quem ele conhece”, diz Faro.
A tendência é que João dispense todas as homenagens, os convidados (“Eu não sou o Roberto Carlos”, costuma dizer aos amigos) para fazer um show sozinho, acompanhado apenas de seu violão, em Juazeiro.
Desde que saiu do norte do estado da Bahia, aos 18 anos, rumo a Salvador, com a vontade de ser crooner de boate e cantor de rádio, João nunca mais voltou. Na verdade, a cidade não acompanhou no mesmo ritmo a trajetória de seu mais ilustre rebento. João ganhou o mundo, inventou a bossa nova, influenciou toda uma geração de grandes compositores, de Caetano Veloso a Edu Lobo, de Gilberto Gil a Chico Buarque, e mudou a maneira de pensar dos jazzistas americanos. Juazeiro, não, seguiu estagnada, característica que costuma afetar quase todas as cidades de médio porte do país, precárias em infraestrutura e carentes de investimento em cultura. Nunca pôde dar a João uma casa de shows à altura de seu perfeccionismo.
Mas agora João decidiu voltar à terra onde nasceu. Vai na raça. Cantará onde der. Se precisar, seu técnico de som, que ele costuma importar do Japão, dá um jeito. Ele já avisou Claudia Faissol e a todos os seus amigos mais próximos: não quer saber de Carnegie Hall nem de Teatro Municipal do Rio. Cantará em Juazeiro. Quem sabe não abre o show com aquela música de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, da qual gosta tanto: “Ai, Juazeiro, não me deixe assim roer/ Ai, Juazeiro, tô cansado de sofrer/ Juazeiro, meu destino tá ligado junto ao teu”

Nenhum comentário: