domingo, 11 de maio de 2008

Especialista francês critica 'era da saúde mental', e prevê nova e 'temível' norma psiquiátrica

De Cécile Prieur

Em entrevista, o psicanalista e professor de psicopatologia Roland Gori discute as mais recentes evoluções e conceitos da sua disciplina e aponta a psiquiatria moderna.

Le Monde - Cada vez mais, fala-se em "saúde mental", e cada vez menos em "psiquiatria". No futuro, para onde nos conduzirá esta tendência?

Roland Gori - Nós entramos na era de uma psiquiatria pós-moderna, que pretende atribuir, sob a denominação de "saúde mental", uma dimensão médica e científica à psiquiatria. Até o presente momento, esta disciplina esteve voltada para o sofrimento psíquico dos indivíduos, movida por uma preocupação em elaborar uma descrição acurada dos seus sintomas, apropriada para cada caso. Desde o advento do conceito de saúde mental, passou a se sobressair uma concepção epidemiológica da psiquiatria, voltada para a detecção e o diagnóstico, da maneira mais ampla possível, das anomalias de comportamento. Em função desta mudança, deixou de ser necessário interrogar-se a respeito das condições trágicas da existência, ou ainda sobre a angústia, a culpabilidade, a vergonha ou a falha; agora, basta abordar os problemas atendo-se ao nível estrito do comportamento dos indivíduos e tentar adaptá-los em caso de necessidade.


PSIQUIATRAS EM BAIXA
8800 Estimativa do número de psiquiatras disponíveis na França até 2025, ou seja, 36% de profissionais a menos em relação a 2002
430 é a taxa de doentes hospitalizados nos serviços de saúde mental a cada 100.000 habitantes, em levantamento de 1998.
Em 1950, eram 99 e, em 1978, 380.

Já o tempo de estadas
em hospitais não
pára de diminuir



Le Monde - Qual foi o fator que contribuiu para operar esta mudança?

Roland Gori - O DSM (Diagnostic and Statistical Manual), uma espécie de catálogo e de ferramenta destinada a recensear as disfunções do comportamento, criada pela psiquiatria americana. Ao multiplicar as categorias psiquiátricas [entre as versões 1 e 4 do DSM, ou seja, entre os anos 1950 e os anos 1990, o universo investigado passou de 100 para 400 disfunções do comportamento], esta ferramenta multiplicou na mesma proporção as possibilidades de se elaborar esses diagnósticos. Atualmente, a disciplina passou a ser dominada pela ditadura dos "dis": distímico, disfórico, diserétil, disortográfico, disléxico... Todo e qualquer indivíduo é potencialmente portador de um distúrbio ou de uma disfunção. Isso tem por efeito de ampliar até o infinito o campo da abordagem médica da existência e a possibilidade de vigilância sanitária dos comportamentos.

Le Monde - De quais maneiras esta concepção da psiquiatria conseguiu se impor?

Roland Gori - Isso ocorreu, sobretudo, por conta da sua pretensão à cientificidade. A saúde mental não se tornou o campo principal por ser imposta a sujeitos vítimas, passivos, mas sim a indivíduos que deram o seu consentimento para tanto. Desde o apagamento das grandes ideologias, o indivíduo vem elaborando para si o seu próprio guia normativo das condutas, as quais, em muitos casos, ele vai buscar nas ciências do vivente. O resultado disso é que daqui para frente, são os "profetas de laboratórios" que nos dirão de que maneira deveremos nos comportar para nos mantermos com boa saúde.

Le Monde - Como serão os tratamentos, num futuro próximo, considerando-se esta evolução?

Roland Gori - Eu não tenho certeza alguma de que os dispositivos que visam a enquadrar a saúde mental sejam norteados pela preocupação de tratar, e menos ainda de encontrar curas. Eles estão antes posicionados do lado de uma detecção precoce e feroz dos comportamentos anormais, os quais passam a ser acompanhados e rastreados no decorrer de uma vida inteira. Ora, ao distanciar-se de toda preocupação com tratamentos, a nova psiquiatria voltada para a saúde mental utiliza indicadores extremamente híbridos. Este foi o caso com a expertise coletiva do Inserm (Instituto Nacional da Saúde e da Pesquisa Médica), realizada em 2005, que preconizava a detecção sistemática da "disfunção das condutas" nas crianças muito novas, com o objetivo de prevenir a delinqüência: aquele relatório misturava elementos médicos, sintomas de sofrimento psíquico, indicadores sociais e econômicos, e até mesmo políticos. Tudo isso desemboca, por trás de uma aparência científica, numa verdadeira estigmatização das populações mais desfavorecidas. O que, conseqüentemente, tem como efeito tornar naturais as desigualdades sociais.

Le Monde - A detecção acurada das disfunções não permite, ao contrário, tratar de modo mais adequado?

Roland Gori - Eu creio que ela permite, na realidade, estender a rede da vigilância sobre os comportamentos, em conexão permanente com a indústria farmacológica. A produção de novos diagnósticos tornou-se o principal foco de interesses dos novos profissionais da saúde mental. Vamos tomar como exemplo o conceito de "disfunções da adaptação": ele é vago o suficiente para poder ser atribuído a toda e qualquer pessoa que se encontra numa posição de vulnerabilidade. Qualquer um que esteja estressado no trabalho ou que esteja angustiado por sofrer de uma doença grave pode, com isso, desenvolver uma "resposta emocional perturbada", que será considerada como uma disfunção da adaptação. A resposta consistirá em administrar-lhe um tratamento a base de medicamentos, acompanhado de uma terapia cognitivo-comportamental visando a fazer com que o paciente recupere uma atitude adaptada. Assim, a "nova" psiquiatria não dá a mínima importância para o que vem a ser o sujeito, nem para aquilo que ele pode estar sentindo. A única coisa que importa é saber se ele é suficientemente capaz de se auto-governar, e de interiorizar as normas de comportamento de segurança que a sociedade espera que ele siga.

Le Monde - Qual será, dentro deste contexto, o papel do psiquiatra ou do psicólogo?

Roland Gori - O principal perigo, o mais temível, é o de que seja exigido cada vez mais dos psiquiatras e dos psicólogos que eles atuem mais como técnicos ou treinadores do que como profissionais habilitados a ministrarem tratamentos. Já faz alguns anos, estamos assistindo a uma multiplicação hiperbólica da figura do "coach", que se tornou uma espécie de supertécnico do íntimo, um empresário da alma. Os dispositivos de reeducação e de sedação das condutas estão fabricando um indivíduo que se conforma com o modelo dominante de civilização neoliberal: um homem neuro-econômico, líquido, flexível, fútil e capaz de ter um bom desempenho.

Le Monde - Haverá ainda assim um lugar para a psicanálise tal como a conhecemos?

Roland Gori - A psicanálise caminha totalmente na contramão dessas ideologias, pelo fato de ela fazer o elogio do trágico, da perda, do conflito interior, de uma determinada relação com a morte e com o desejo. Portanto, naquilo que a caracteriza como uma prática social, ela pode muito bem desaparecer. Mas eu também acredito que o que ela representa -uma determinada filosofia norteada pela preocupação da pessoa com ela mesma, que tende a construir um sujeito ético responsável- não irá desaparecer.

A este respeito, é espantoso constatar que a psicanálise, que foi renegada pelos expoentes da saúde mental, está sendo procurada atualmente pelos serviços de medicina não psiquiátrica. Ao que tudo indica, a evolução atual nos mostra que os médicos, diferentemente dos novos psiquiatras, passaram a reconhecer que existe uma parte heterogênea no exercício da medicina; uma parte que se caracteriza pelo fato de que toda doença é um drama na existência, e que é preciso ajudar o paciente a superar esta prova. Da mesma forma, embora a psicanálise não esteja "na moda" atualmente em nossa cultura, a demanda não pára de aumentar nos consultórios.

Tradução: Jean-Yves de Neufville
Caros,
PS: Analise a necessidade de imprimir esta mensagem,
pois respeito ao meio ambiente e desperdício não
combinam!
Att,
Prof. Deraldo Dias

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